domingo, 3 de maio de 2009

Roy Lichtenstein e Florbela Espanca

Crying Girl (1964)
Lichtenstein

Lágrimas Ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca
(Livro de Mágoas, 1919)

Roy Lichtenstein (1923-1997)
Natural de Manhattan, estudou na Parsons School of Design onde pinta obras académicas e faz parte de uma banda de jazz. Mais tarde, na Universidade de Ohio começa a realizar trabalhos mais abstractos de influência europeia.
É na força aérea que Lichtenstein tem um contacto mais directo e significativo com os cartoons de guerra e com artistas europeus que irão mais tarde servir de inspiração para o seu trabalho. Contudo, continua a criar obras de tema americano graças às quais começa a expor em galerias e museus.
Lichtenstein ficou conhecido pelas suas personagens icónicas retiradas dos filmes de Walt Disney e da BD, de cores puras, lisas e brilhantes, pinceladas imperceptíveis e recurso ao pontilhismo. Ao contrário de Andy Warhol que trabalhava mais através da serigrafia, as obras de Lichtenstein são, na sua maioria, pinturas a óleo.
Observava anúncios publicitários a partir dos quais realizava “cópias” muito simples e por vezes algo esquematizadas, e, tal como Warhol, retrata personalidades como George Washington. Mas é a sua inspiração na BD que realmente o tornou mundialmente conhecido. Segundo o autor, o seu trabalho retira elementos formais da BD, mais do que temáticas: “Devo à banda desenhada os elementos do meu estilo, mas não os temas”.
Por volta de 1960, o artista começa a dar protagonismo às mulheres de algumas BDs, retratando-as quase sempre loiras. Estas mulheres representam o olhar masculino sobre a mulher do pós guerra, ou seja, aparecem como um objecto estereotipado: “Woman draw themselves this way – that is what make-up really is. They put their lips in a certain shape and do their hair to resemble a certain ideal. There is an interaction that is very intriguing. I've always wanted to make up someone as a cartoon. (...).” (Lichtenstein citado por John Coplans em “Roy Lichtenstein: An Interview” no catálogo do Museu de Arte de Pasadena).

Florbela Espanca (1894 – 1930)
Poetiza portuguesa e possível licenciada em Direito na Universidade de Lisboa, Florbela Espanca colaborou com jornais e revistas, entre os quais se destaca Portugal Feminino e O Século. Publicou em 1919 a sua primeira obra poética, intitulada Livro de Mágoas e em 1923 o Livro de Soror Saudade.
Uma vida muito sofrida levou-a a três casamentos falhados, muitas desilusões amorosas e ao desgosto de perder o irmão mais novo, acontecimentos que marcaram profundamente a sua vida e obra, morrendo bastante nova com graves problemas psicológicos. Ter-se-á suicidado devido a uma enorme pressão social, embora oficialmente a sua morte fosse apresentada como resultado de um edema pulmonar.
A sua poesia é muito marcada pelo sofrimento, solidão e desencanto, aliados a uma ternura e desejo de felicidade, com marcas de uma grande intensidade lírica e de um profundo erotismo. Influenciada pela técnica do soneto de Antero de Quental e Camões, a sua obra é extremamente sentimentalista, ligada a um neo-romantismo e simbolismo, contrastando com as tendências modernistas da época. Os seus poemas desligam-se de preocupações de conteúdo humanista e social, traindo um pendor egocêntrico.
Após a sua morte foram publicados sete obras da sua autoria – entre os quais se destacam: Charneca em Flor, As Marcas do Destino e Dominó Negro – e Espanca tornou-se finalmente conhecida do grande público.
Considerada uma poetisa de excessos, cultivou exarcebadamente a paixão com uma voz vincadamente feminina, sendo considerada uma das grandes figuras femininas da literatura portuguesa do século XX e sendo, com Irene Lisboa, precursora do movimento de emancipação feminino.

A representação da mulher e do corpo feminino foi sempre um dos grandes temas de toda a arte. Seja na pintura ou na literatura a verdade é que o sexo feminino sempre exerceu um grande fascínio tanto pela sua beleza como pelo seu mistério. Artistas de ambos os sexos utilizam-no como inspiração para as suas obras como se pode observar pelas escolhas para este trabalho.
Crying Girl é uma das várias obras estereotipadas de Lichtenstein. A mulher acima representada não tem uma identidade. Não representa nenhuma personalidade famosa. É apenas uma mulher entre muitas. Ao representá-la chorando, Lichtenstein pretende mostrar a fragilidade feminina criticando a sociedade americana que a “molda” como boa dona de casa e “objecto decorativo” do marido.
O contorno acentuado a preto, as cores fortes e alegres como o amarelo do cabelo e o vermelho dos lábios, o pontilhismo grosso, são tudo características da obra deste artista. Parece uma serigrafia pela perfeição da cor mas trata-se na verdade de uma pintura a óleo com uma pincelada exímia, totalmente imperceptível.
A mulher desconhecida chora muito ao de leve, limpando as lágrimas de forma suave para que ninguém repare. Contudo é perceptível um ligeiro sorriso nos seus lábios. Uma recordação triste? Algo que o marido fez e ela tenta desvalorizar?
A esposa perfeita oculta ao marido e aos outros as suas tristezas e por mais que sofra tem sempre um sorriso no rosto. Também no poema, através de palavras, isso é visível. Florbela Espanca oculta as suas lágrimas para que ninguém as observe enquanto recorda o tempo em que foi feliz.
Inspirando-se na sua própria vida a autora do poema retrata a fragilidade da mulher de maneira mais sentimental e pessoal, ilustrando de maneira gloriosa aquilo que Lichtenstein pretendia transmitir. Ela recorda tempo idos em que a felicidade abundava e ao mesmo tempo entristece-se pela infelicidade do tempo em que escreve. Nele, Florbela Espanca mostra que a mulher é um ser frágil mas ao mesmo tempo forte, capaz de sobreviver a tudo. Até mesmo à solidão.

Bibliografia:
Lobel, Michael, Image Duplicator, Roy Lichtenstein and the Emerge of Pop Art, Yale University Press, Londres: 2002
Osterwold, Tilman, Pop Art, Taschen, Köln: 2007
Vários, Cadernos de História de Arte 10,Porto Editora, Porto: 2004
Waldman, Diane, Roy Lichtenstein, Guggenheim Museum, Nova Iorque: 1993
Nicole Cotter, 35169
Artes do Espectáculo

9 comentários:

  1. O que mais me fascina na pintura de Lichtenstein é o facto de ele misturar linhas negras e grossas com cores vivas e "primárias" e com a técnica de Benday Dots (que através da ilusão de óptica transforma dois circulos, neste caso manualmente rigorosos, de cores distintas numa terceira côr), e, com isto, formar uma imagem nítida e perfeita. O observador consegue sempre ter duas leituras do quadro, uma quando está próximo e outra quando está mais afastado, sendo a primeira mais abstracta que a segunda.

    Por outro lado, o que mais me intriga na obra dele, e que penso que seria um bom tema de debate, é o facto de muitas das suas imagens, como é o caso desta, não serem totalmente originais, mas sim cópias de imagens de artistas de BD como prova o seguinte site: http://davidbarsalou.homestead.com/LICHTENSTEINPROJECT.html.
    http://www.boston.com/news/globe/living/articles/2006/10/18/lichtenstein_creator_or_copycat/ -este artigo, em seguimento do site anterior, levanta algumas questões pertinentes que poderiamos eventualmente discutir na sexta feira.

    Inês Carvalho, 37101

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  2. A relação entre a ideia de mulher do Liechtenstein,(“Woman draw themselves this way – that is what make-up really is. They put their lips in a certain shape and do their hair to resemble a certain ideal."), e a ideia de mulher da Florbela Espanca, ideia essa que é um espelho de si mesma mas que é, ao mesmo tempo, um retrato quase imortal da alma feminina, em determinados aspectos, parece-me bastante próxima.
    A Nicole fala das possíveis causas para a mulher de Liechtenstein estar a chorar e penso ser possivel acreditarmos que também ela pode estar a lembrar-se dos tempos em que foi feliz ou em que acreditou na felicidade amorosa e vê, agora, que tudo parece ter sido uma ilusão. A mulher no retrato parece chorar baixinho, apercebendo-se da sua realidade mas sem histerismos, porque, como diz, esta mulher será uma "dona de casa" que tem sempre de cumprir o seu papel. E tal como acontece a Florbela Espanca não é suposto abandonar os "bons costumes" por causa de desgostos amorosos ou desilusões.
    Gostava também de acrescentar que o traço forte de Liechtenstein no quadro e a expressão da mulher levam-me de imediato à última estrofe do poema da Florbela, como se os traços fortes personificassem a dor que cada uma das lágrimas, separadamente, brotadas causam na alma da poeta apesar de , fiicamente, ser um fantasma que ninguém consegue ver verdadeiramente.

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  3. Eu não entraria pelo caminho de tentar adivinhar o motivo pelo qual as duas mulheres choram. Na minha opinião, um dos aspectos que, talvez, merecem a nossa atenção é a forma como Lichtenstein critica uma realidade cometendo o mesmo "erro". Apesar de continuar a propagar diferentes estereótipos, quando Lichtenstein copia imagens de BD’s e de publicidades, ele não se apropria dos temas originais; o que ele faz, na verdade, é (re)utilizar as imagens para lhes dar um novo sentido. Assim, se antes temos a mulher retratada na BD como um ser submisso ou como alguém que desempenha sempre o mesmo papel na vida, agora temos uma posição crítica a essa ideia, a esse modelo de mulher. A ideia é que Lichtenstein utiliza estereótipos copiando-os (e daí o carácter paradoxal do seu método) mas já com outra intenção: apelar para a realidade da mulher. Os traços perfeitos, os lábios carnudos e vermelhos fazem também parte da mulher que se exige, uma mulher perfeita que corresponda ao estereótipo: atraente, bonita, dedicada e sempre sorridente.
    Florbela Espanca, por seu lado, exprime no seu poema a individualidade da mulher, a existência de um “eu” sentimental e emocional. Ou seja... é a expressão de algo interior, o "conteúdo" de uma "embalagem", embalagem essa que é retratada por Lichtenstein.
    Uma atmosfera de nostalgia está presente no poema, criada por tempos remotos em que ainda era possível a expressão livre de si mesma, feiz (Se me ponho a cismar em outras eras/ Em que ri e cantei, em que era querida,/ Parece-me que foi noutras esferas,/Parece-me que foi numa outra vida...). À medida que o poema avança, essa melancolia é evocada e culmina com a impossibilidade da mulher que fala no poema em se manifestar emocionalmente (E as lágrimas que choro, branca e calma,/ Ninguém as vê brotar dentro da alma!/Ninguém as vê cair dentro de mim!); e é este fingimento, esta ausência/omissão de sentimentos “puros” que também preside no quadro de Lichtenstein (é de notar que as lágrimas da rapariga são acompanhadas por um sorriso). Neste sentido talvez se evoque a ideia de dupla-face que omite algo para agradar os que estão em volta. Porém, o facto de ninguém ver as lágrimas da mulher que fala no poema pode ter a ver com a solidão ou com a falta de atenção por parte de outros. E aqui já não falamos numa mulher que vive para ser perfeita mas de alguém que sofre "transparente".
    É curioso, também, reparar que o quadro (e grande parte dos quadros de Lichtenstein) consiste num grande-plano do rosto da mulher… não é o corpo da figura que está em causa mas o seu rosto; e o grande-plano pode ser entendido como um olhar para dentro, em profundidade, talvez o grande-plano que Florbela Espanca faz de si mesmo quando se debruça sobre o sofrimento que, mesmo assim, tenta esconder.

    - Disse alguma coisa de jeito, Nicole(ta)?
    Beijinho e bom trabalho!


    Sara 35175

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  4. "um dos aspectos que, talvez, merecem"
    *merece
    (corrijo)

    Sara

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  5. Caras colegas,
    Referiram o aspecto das "cópias". Bem, devo esclarecer que, tal como disse a Sara as "cópias" de Lichtenstein eram muito mais que simples cópias. Ele pegava num pormenor em particular e conferia-lhe toda a importância que ele considerava merecerem, retirando-as de um papel mais secundário da sua vinheta original (ou seja, dos quadradinhos dos comics) e dava-lhes o maior destaque possível.
    Ele fazia muito mais do que uma simples "cópia", pois as suas obras possuem sempre um pouco do caracter único e particular do artista.
    Lichtenstein pretendia mostrar que por muito diferente que as mulheres sejam umas das outras no fim tudo se resume à sua função e ao seu papel em relação ao seu marido. É uma critica ao homem por tratá-la como um objecto mas também à própria mulher que, apesar de sofrer com isso, ñão impõe a sua vontade.
    Com o artista plástico vemos a mulher como um conjunto ao passo que com a poetiza essa realidade muda para o plano do individual. É a vida dela que está colocada no papel e são os seus sentimentos, e apenas os seus, que estão retratados.
    Ambos se cruzam quando falam em sofrimento interior e quando algo neles nos remete para uma felicidade passada (o sorriso ténue e os últimos três versos).

    Obrigada às três pelos vossos comentários muito úteis e peço desculpa por mais esta divagação.
    Beijinho Sarinha)
    Nicole Cotter

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  6. Acho que o que a Nicole referiu de que "as obras possuem sempre um pouco de carácter único e particular do artista" diz muito acerca da originalidade de quem faz uma obra. Não é só Lichtenstein que o faz, um bom artista tem de fazer obras suas e não copiar, pode retirar fragmentos, ideias, coisas daqui e dali.
    Quanto ao trabalho deste senhor (que na verdade não sei quem é, mas já vou ver)parece ter um certo fascinio pela mulher, aquele ser aparentemente frágil, apesar de caracterizar um certo tipo de mulher, loira bonita. A mim parece-me sempre a mesma história, a figura de uma mulher não necessita ser assim tão bela e tão frágil, no entanto é o geral. Esta é totalmente o contrário do que Florbela Espanca se achava "grosseira e feia, grotesca e miserável", mas há aquela semelhança do sofrimento de ambas.
    Também não sei porque é que a mulher na obra chora mas espero que seja de tristeza ou então estraga-me o comentário!

    Boa sorte para a apresentação!

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  7. Ah boa, esqueci-me do nome!
    Comentário de dia 6 de maio ás 15:32 (este aqui em cima) pertence a:

    Milene Cardoso n.º 37912

    (agora sim)

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  8. Parece-me que já referiram mas ainda assim pensei na forma como a mulher tem sido retratada na literatura e em outras artes. A idealização tanto física como psicológica da mulher pelos autores masculinos e a sua desmistificação por autoras e artistas femininas. Lichtenstein pinta uma idealização sua ou da sociedade americana, Espanca fala com conhecimento de facto sobre o que é ser-se mulher numa sociedade que estabelece o padrão e o papel da mulher.
    Lembro-me de Simone de Beauvoir quando disse “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”.

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  9. Julgo que o poema está inteiramente interligado com esta figura feminina aqui apresentada.
    O rosto enigmático desta figura sugere toda a narrativa poética.

    A meu ver não está marcado na pintura, uma versão estériotipada da mulher. Mostra uma mulher moderna, com sentimentos e, quem sabe, um pouco de nostalgia.


    Este lado soturno que Florbela dá e este poema tem também dois lados: o antes - quando há a recordação da felicidade, e o depois - quando se vê numa situação de desespero.

    Desejo-te uma óptima apresentação

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