domingo, 24 de maio de 2009

Cindy Sherman - Al Berto

Cindy Sherman
Untitled Film Still # 48, 1979
Black-and-white photograph
8 x 10 inches

O LUGAR é agreste
manchado de mil amarelos em expansão vermelhos
as veredas abrem-se húmidas
quando o sol está a pique e fere tudo o que se move

eles caminham na direcção das ruínas lado a lado
de costas para o olho da câmara
descrevem um longo movimento circular
por hoje chega
basta-nos filmar o crepúsculo

quando chegados ao cimo da colina
as ruínas da casa desaparecem na fulguração campestre do calor
o sal envolve-os despem-se
e as urtigas fustigam os sexos
estamos muito próximos de um mar

apesar do mau tempo não choverá
ficamos com a certeza de um pouco de sémen derramado
durante o dia com inocência

mais tarde
a solidão evadir-se-á da cumplicidade muda da ave pousada sobre a pedra

Al Berto
de «Trabalhos do Olhar», 1976/82: Filmagens, 1980/81


Cindy Sherman nasceu em New Jersey, mas passou toda a sua infância e parte da adolescência em Long Island. Ainda jovem, decide frequentar as aulas da Satate University College, de Buffalo, onde conhece Robert Longo. Juntos criam um espaço de exposições independente, Hallwalls. Em 1977, começa a servir-se de si mesma como modelo na série Untitled Film Stills, onde interpreta várias personagens femininas, estereotipadas, de filmes de série B, de clássicos de Hollywood, de film noirs ou de filmes estrangeiros (principalmente os filmes da Nouvelle Vague francesa e do Neorealismo italiano). Em 1980, realiza com esta série uma exposição individual num dos berços da avant-gard do final do século XX, The Kitchen. Este evento granjeia-lhe o reconhecimento do público e dos críticos e faz com que entre numa brilhante ascensão.

A série Untitled Film Stills foi inspirada nas fotografias que eram usadas para fazer publicidade aos filmes nos cinemas – as film stills. Estas representavam um momento chave do filme, contendo todo o seu espírito e atmosfera. Quando se tratava de filmes mais antigos, eram impressas a preto e branco e tinham muitas vezes o formato de 8x10''.
Nesta fase, Sherman representa “the most artificial-looking kinds of women” - mulheres carregadas de maquilhagem, que usam saltos altos, soutiens pontiagudos, etc. Aqui, são retratadas personagens-tipo, desde a mulher de carreira, passando pela rapariga inocente da “small town” até à fulgurante bibliotecária. Untitled Film Stills têm uma enorme carga dramática, sendo a acção subentendida pelo observador. Cindy Sherman não nos diz do que é que falam as suas fotografias, nós é que as temos que interpretar. Tal como os film stills, estas fotografias obrigam-nos a levantar questões sobre a personagem retratada, a acção em que está envolvida, o tipo de filme representado, a identidade da actriz, etc; as respostas que são obtidas vão variar consoante o observador e depender do nível de conhecimento cultural/cinematográfico de cada um.


Al Berto nasceu em Coimbra, mas foi em Sines que cresceu, até à sua adolescência. Frequentou dois cursos de artes plásticas, um em Portugal e outro em Bruxelas (em 1967). A partir de 1971 dedicou-se exclusivamente à literatura. Os seus textos são caracterizados por apresentarem, muitas vezes, um carácter fragmentário, numa ambiguidade entre a poesia e a prosa. A sua obra poética, de certo modo, recupera uma herança surrealista, que junta o real ao imaginário. Nela é representada, frequentemente, um quotidiano de objectos e de pessoas, passado e presente, que liga um tempo histórico a um tempo individual.
Al Berto tinha um estilo auditivo, durante o seu processo criativo lia os seus poemas em voz alta e era em voz alta que mais gostava de expressar a sua obra, segundo ele “os poemas precisam de uma voz”. Participou em várias leituras públicas. Tal como Sherman foi actriz nas suas fotografias, Al Berto poderá ter sido actor da sua própria escrita ao interpretar a sua obra em frente a um público.

Ao observarmos a imagem Untitled Film Still # 48 de Cindy Sherman e o poema [O lugar...] de Al Berto encontramos logo um ponto em comum, ambos pretendem ilustrar um ambiente cinematográfico, um ambiente que, mesmo não pertencendo a um filme real, conseguimos identificar, é-nos familiar. Tanto num como no outro existe uma linha ténue a separar o real do imaginário.
Para além disso, ambos apontam para o tema da solidão. Em Sherman, essa solidão é visível na forma como a figura feminina está retratada, a olhar para o horizonte, de costas para a câmara, à espera que alguém apareça ou que alguma coisa aconteça naquela paisagem deserta. Já em Al Berto, a solidão é ilustrada de duas formas através do último verso: “a solidão evadir-se-á da cumplicidade muda da ave pousada sobre a pedra”, aqui a solidão tanto pode ser alusiva às ruínas da casa, que depois do anoitecer ficam desertas, sem nenhum habitante, a não ser a ave que lá pousa, como pode ser uma metáfora dos actores, que inicialmente, mesmo que acompanhados durante as filmagens e de terem tido uma relação, ainda que fictícia, sentem-se sozinhos, no entanto, à medida que o tempo passa essa solidão vai-se evadindo da “cumplicidade muda” entre os dois.
Uma das muitas diferenças entre estes dois artistas reside no facto de Al Berto transpor para a sua obra as principais problemáticas da sua vida pessoal, tais como o exílio, a homossexualidade, a vida errante, a doença (Sida) e a noção de morte próxima, enquanto que Cindy Sherman apenas representa personagens-tipo que, aparentemente, não têm qualquer ligação com a sua própria vida.

Bibliografia Convencional

OWENS, Craig, Cindy Sherman, London, October Press, 2006
DANTO, Arthur Coleman, Cindy Sherman: Untitled Film Stills, New York, 1990, p. 8 - 14
MORRIS, Catherine, Cindy Sherman, New York, Harry N. Abrams, Inc, 1999, p. 5 - 54
RUHRBERG, Karl, SCHNECKENBURGER, Manfred, FRICKE, Christiane, HONNEF, Klaus. Arte do Século XX: Pintura, Escultura, Novos Media, Fotografia. Colónia, Taschen, 2005, p. 676, 677
GROSENICK, Uta, RIEMSCHNEIDER, Burkhard, Art Now, Colónia, Taschen, 2005, p. 288 – 291
CHOUGNET, Jean-François, DEMPSEY, Amy, CORNE, Eric, ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Museu Berardo: Um Roteiro, Londres, Thames & Hudson Ltd., 2007, p.130
Al Berto, Vigílias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.47
Al Berto, O Último Coração do Sonho, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2006, p. 15 – 31
DUNCA, Paul, Alfred Hichcock: A Filmografia Completa, Colónia, Taschen, 2003


Bibliografia Virtual

http://www.tate.org.uk/servlet/ViewWork?workid=26065
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2003000100004&script=sci_arttext
http://en.wikipedia.org/wiki/French_New_Wave
http://en.wikipedia.org/wiki/Italian_Neorealism
http://en.wikipedia.org/wiki/Classical_Hollywood_cinema
http://www.astormentas.com/alberto.htm
http://www.assirio.com/autor.php?id=973&i=Q
http://nescritas.com/homenagemalberto/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Al_Berto
http://www.theslideprojector.com/art6/art6lecturepresentations/art6lecture13.html


Cinematografia

SHERMAN, Cindy, Doll Clothes, 1975
Hitchcock, Alfred, Vertigo, 1958
Hitchcock, Alfred, Os Pássaros, 1960
Hitchcok, Alfred, Psico, 1960
Godard, Jean-Luc, Á Bout de Souffle, 1960


Inês Oliveira Carvalho, nº 37101


7 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Tem piada que, nesta série de fotografias, vejamos a Cindy Sherman a representar actrizes a representar papéis-tipo, neste caso a tipa “campónia”, que vai para a estrada procurar uma nova vida (muito típico da imagética norte-americana, como já bem vimos). É um jogo de fusão de realidades (ou ficções) interessante.

    Quanto ao poema, é claramente um poema muito visual (como toda a poesia do Al Berto), e isso é óbvio nas indicações espaciais e meteorológicas (as veredas abrem-se húmidas; o sol está a pique; crepúsculo; cimo da colina; ruínas da casa; fulguração campestre do calor; mar; apesar do mau tempo não choverá). É interessante verificar como estas anotações apontam em várias direcções – fala-se em humidade, sol a pique, crepúsculo, mar, mau tempo - tornando difícil uma definição clara do espaço físico em que o poema se movimenta. Isso parece estar também presente na fotografia que, por estar aparentemente em negativo (que eu cá não percebo muito de técnica fotográfica), cria-se aquele céu também algo dúbio. Ou seja, por oposição ao que acontece no poema do Al Berto, aqui não se sabe se vai chover ou não. O futuro é incerto.

    Sendo que um dos pontos de união entre os dois textos é a solidão, parece-me interessante pensar a solidão presente em cada um dos textos na sua especificidade. Por um lado, a solidão da figura feminina na fotografia, com a sua mala, provavelmente de partida, à espera de uma boleia que a leve para onde ela quer ir, onde, espera ela, a vida será melhor; uma solidão ansiosa, produtiva, portanto. Por outro lado, a solidão presente no poema do Al Berto é a solidão dos derrotados; há essa aceitação passiva da solidão, que se vê também no outro texto escolhido pela Ana Cláudia, que permanece mesmo perante a presença física do outro (no poema isto converge numa relação sexual que não é suficiente para afastar esse sentimento (é curioso constatar que as expressões “sémen derramado” e “solidão” aparecem com apenas dois versos entre eles, como quase complementares)).

    Essa associação final que fazes, relativa aos actores, é algo que não apreendo perfeitamente, porque não me parece que fosse metáfora que passasse pela cabeça do poeta. Eu diria que essa cumplicidade muda poderia ser, no diálogo que estabeleceste, não entre os actores, mas entre quem está à frente e quem está atrás da câmara. Até porque, olhando para o poema com atenção, a “cumplicidade muda” é da ave, e não de alguma das pessoas que entra nessa relação humana estabelecida ao longo do poema. Ou seja, não vejo grande lógica em transformar metaforicamente a ave num actor, mas mais em quem está atrás da câmara (realizador, fotógrafo, etc), observando e registando.
    Pensarmos as coisas desta maneira criaria uma dinâmica ainda mais interessante, na minha perspectiva, quando olhando a obra da Sherman, que é simultaneamente a pessoa à frente e por detrás da lente; a que observa e a que é observada; a “ave pousada sobre a pedra” e os “actores” que “caminham na direcção das ruínas lado a lado”.

    Por fim, fico à espera da apresentação oral para perceber qual a razão para teres colocado aqui o à bout de souffle, que é um dos meus filmes preferidos.

    E, bom, penso que não tenho mais nada de útil a dizer. Parece-me, à partida, um dos trabalhos mais interessantes que tivemos. Fizeste duas escolhas muito inteligentes e abordaste-as com perspicácia.

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  3. Olá,
    penso que a superfície do trabalho de Cindy Sherman faz parecer ela representar personagens-tipo que não têm ligação à ela própria, mas que não é bem este o caso.
    O seu trabalho insere-se nas temáticas (tão na moda no mundo académico) do corpo e da identidade (do Eu). O corpo no sentido alargado, abstracto - incluindo o corpo do outro como referência para a própria noção do corpo (do espectador). O trabalhar com representações do feminino e utilizando o seu próprio corpo parece-me bastante significativo. É como que experimentar/participar nestas representações e procurar-se a si próprio nelas. Ao mesmo tempo experimenta a "nova" noção de corpo "não-fixo" (i.e., se pensarmos nas possibilidades cirúrgicas), artificial e manipulável. Fernando Guerreiro fala em "Monstros felizes# acerca de Sherman, no corpo como "um dispositivo de ficções " e "corpo-prótese". As imagens em: http://www.metropicturesgallery.com/index.php?mode=artists&object_id=4 parecem-me demonstrar isto bem.

    Cumprimentos

    Yves Berndt dos Santos

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  4. Do que eu conheço da Cindy Sherman, ela é uma autêntica actriz. Cria e inova as suas personagens como uma verdadeira estrela. Penso que o Al Berto também é um pouco assim, basta vermos as capas dos livros dele (em que é sempre o corpo de Al Berto interpretando ou recriando personagens).

    Penso que na ligação da imagem com o poema, tal como o Yves também comentou, o "corpo" é importante. Na imagem, o corpo está em harmonia com o espaço e podemos imaginar 1001 histórias para aquela mulher. No poema, também podemos imaginar tudo o que se passou com as personagens que estão integradas nos artigos (eles, estamos, chegamos). Pode existir uma ligação directa entre o autor do poema e as restantes personagens (como se ele estivesse a descrever algo que lhe aconteceu), mas também pode ser apenas uma "invenção".

    Será que este comentário faz algum sentido?! Enfim. Perdoa-me :-P

    Já agora, não percebo porque escolheste o "Psico" do Hitchcock.

    Beijinho e boa apresentação ;-)

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  5. Mesmo antes de ler a tua bibliografia a primeira coisa que me veio à cabeça foi mesmo Alfred Hichcock nomeadamente o filme Psico. Parece que a mulher da foto está a fugir de algo, e está seguramente sozinha. A solidão está muito presente nesta foto. Adorei a luz na foto que indica que está prestes a anoitecer e a noite vai evidenciar ainda mais a solidão da personagem. Ao olharmos para a foto é impossível não tentarmos "adivinhar" o que vai na cabeça daquela mulher.Estará com medo, alívio? O que será que está a sentir? Dá muito que pensar e é esse tipo de fotografia que mais me agrada.

    Gostei muito da tua escolha

    Liliana Matias nº 36261

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  6. Concordo com a Liliana, mas além deste filme em especifico, lembrei-me dos filmes noir e do estilo das actrizes dessa época. Além da solidão que surge na obra dos dois, em Cindy Sherman noto também uma espécie de ausência de identidade, pelo facto de ela estar de costas e não revelar a sua face e desse modo dificultar ainda mais a descoberta dos seus sentimentos. Gostei das tuas escolhas e da ligação.

    Nádia Canceiro nº36265

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  7. olá =)

    Antes de ler o quer que fosse do teu post, imaginei imediatamente um carro a surgir do horizonte, como se, realmente, fosse já um filme...

    A rapariga, a meu ver, parece estar á espera de algo devido à sua pose (falando por mim, se estivesse um dia inteiro em pé no mesmo sitio não acredito que estaria como ela =P )... Acho que talvez esteja à espera de alguém que a venha "salvar" (se assim se pode dizer) da solidão (que já falaste acima) que sente a uma hora tão tardia... Quem sabe o que a fez chegar ali? (mais uma vez isto já sou eu a inventar um filme para a fotografia ^.^ )

    No entanto ela poderá, apenas, estar a apreciar o anoitecer pois é exactamente ali que ela que estar... Sozinha e a seguir o seu próprio caminho (sei que nada teria a ver com o poema que escolheste mas seria outra leitura =] )

    Só mais uma coisa ( desta vez quase que a "justificar" esta minha imaginaçao do filme)... Visto que Cindy Sherman apenas representa personagens-tipo (como já referiste), é bastante fácil inseri-las em qualquer contexto que faça sentido na nossa cabeça =)

    Joana Melo nº37142

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