segunda-feira, 19 de março de 2018

Lu Nan. Trilogia?

Citando o co-diretor da Serpentine Galleries, Hans Ulrich Obrist, em entrevista ao The Guardian: "Today, curating as a profession means at least four things (…) to preserve, in the sense of safeguarding the heritage of art. (...) to be the selector of new work. (...) to connect to art history. And (...) displaying or arranging the work". Como tal, os curadores encontram-se envolvidos numa profusão de facetas preponderantes no modo como percecionamos a arte. 

Até 14 de janeiro deste ano, esteve patente no Museu Coleção Berardo a exposição  Lu Nan. Trilogia, Fotografias, curada por João Miguel Barros. Esta apresentou "uma seleção de trabalhos do fotógrafo chinês Lu Nan, que fazem parte de uma trilogia que teve início em 1989 e que ficou concluída quinze anos depois, em 2004" (podem obter mais detalhes sobre a exposição aqui). 

A obra de Lu Nan foi apresentada como um reflexo contemporâneo da trilogia clássica representada na Divina Comédia de Dante Alighieri. A disposição das fotografias no espaço convidou-nos a percorrer o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Este paralelismo levou o observador a percecionar a obra de Lu Nan de um modo alheio à catástrofe que ocorre no contexto chinês. Assim, ainda que este diálogo tenha, talvez, proporcionado uma maior proximidade entre o público e a voz da curadoria, a problemática singular implícita na obra do fotógrafo acabou por se desvanecer.

Neste sentido, discordo com João Miguel Barros, curador da exposição em causa, que descreve as imagens como retratando "a China de uma época talvez já diferente da atual, como bem poderia ser a realidade de muitos outros países e lugares por esse mundo fora". De facto, na minha opinião, a obra de Lu Nan realiza uma forte crítica ao contexto social, político, religioso, económico da China contemporânea. 

A minha conclusão será que nos cabe, a nós espetadores, adotar um olhar crítico, apurado e curioso no modo como percecionamos a arte.


Lu Nan | The Forgotten People: The State of Chinese Psychiatric Wards
Zhang Shuhua (right), 38, has been hospitalized for over two months in the Tianjin  Psychiatric Hospital. Because there is no one to turn her over and wash her, she has grown fist-sized bedsores. Ten days after this picture was taken, she died in the hospital. Tianjin, China.
1989. © Lu Nan | Magnum Photos

Lu Nan | The Forgotten People: The State of Chinese Psychiatric Wards
An 11 year old girl in the Beijing Psychiatric Hospital. Due to a lack of children's ward, China's most juvenile sufferers have to be kept together with adult patients. Rather than taking care of such children, the adult patients may even beat them.
1989. © Lu Nan | Magnum Photos 

Lu Nan | The Forgotten People: The State of Chinese Psychiatric Wards
Psychiatric Hospital. Heilongjiang, China.
1989. © Lu Nan | Magnum Photos

Referências:
Barros, João Miguel. Lu Nan - O homem e a obra. 2017, http://pt.museuberardo.pt/exposicoes/lu-nan-trilogia-fotografias-1989-2004, Acedido a 22 de março de 2018.

Jeffries, Stuart; Groves, Nancy. Hans Ulrich Obrist: the art of curation. 2014, https://www.theguardian.com/artanddesign/2014/mar/23/hans-ulrich-obrist-art-curator, Acedido a 22 de março do 2018.

Teresa Maia, nº 147188

2 comentários:

  1. Grata pela sua interessante reflexão, Teresa, que nos alerta para o facto de que as opções curatoriais constituem uma moldura que determinada por uma série de opções de caráter prático que condicionam também o modo como o corpo do espetador se posiciona face às obras. Infelizmente deixei passar esta exposição (que queria muito ter visto!), mas quando estive em Pequim e visitei um complexo de galerias conhecido como 798 Art Zone fiquei abismada com o caráter interventivo da arte contemporânea chinesa.

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  2. Também fui para ver esta exibição antes de Natal, uma experiência muito emocional para mim como uma criança da diáspora chinesa.

    Concordo com a opinião de Teresa sobre a força crítica da série - era um retrato muito poderoso dum grupo de pessoas abandonadas pelo sistema. Embora cada sociedade tenha as suas heterotopias da deficiência, as condições nestas imagens eram muitos chocantes, sublinhado pela escolha de tirar estas fotografias em preto e branco, que aumenta o ambiente sério e triste, e o efeito emocional subsequente.

    Contudo a primeira parte desta trilhou faz uma crítica do estado, as outras duas eram bem diferentes. A segunda, se me lembro bem, era uma série sobre a igreja católica em China, muito menos radicalmente chocante em termos das condições de vida comparado com os asilos. A minha parte favorita da exibição era a terceira, uma coleção de imagens da vida dos agricultores em Nepal rural, onde a vida na terra era captada com muita graça. A ação do corpo e a corporalidade destas pessoas pareciam incrivelmente harmoniosa - a contraste entre estes corpos fortes em diálogo com os corpos rejeitados da primeira parte só aumentava a força de ambos elementos para criar uma justaposição poderosa.

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