domingo, 18 de abril de 2010

Edward Weston - Herberto Helder

O lugar do corpo na escrita da paisagem

A Imagem:



White Dune, 45SO


O Poema:

Eu podia abrir um mapa: «o corpo» com relevos crepitantes
e depressões e veias hidrográficas e tudo o mais
morosas linhas e gravações um pouco obscuras
quando «ler» se fendia nalguma parte um buraco
que chegava repentinamente de dentro
a clareira arremessada pelo sono acima
insóna vulcânica sala contendo toda a febre «táctil»
furibunda maneira
esse era então uma espécie de «lugar interno»
áspera geologia alcalina e varrida e crua
exposta assim à leitura que se esqueceu do seu «medo»
o corpo com todas as «incursões» caligráficas
«referências» florais «desvios» ortográficos da família dos carnívoros
«antropofagias» gramaticais e «pègadas»
ainda ferventes
ou minas com o frio bater e o barulho escorrendo
«um mapa» onde se lia completamente o sangue e suas franjas
de ouro o irado desregramento da «traça
primeira» e o apuramento do mel com a labareda
inclusa o corpo na prancheta
para a lisura sentada onde se risca a posição mortal
«um papel» apenas a branca tensão do néon
no tecto o jorro de cima «declarando» qualquer rispidez
a suavidade toda uma bastarda
graça
de infiltração na sonolência ou explosiva
«vigilância» combustão das massas ao comprido
do «desenho» irregular
e só então assim desterrado do ruído nos subúrbios
ele apenas agora «composição» forte e atada de elementos
escarpas rapidamente
decorrendo
corpo que se faltava em tempo «fotografia»
de um «estudo» para sempre
como lhe bastava ser possível tão-só uma certa
temperatura
grutas aberturas minerais palpitações no subsolo
tremores
anfractuosidades esponjas onde pulsavam canais dolorosos
e a arfante matéria irrompendo nos écrans
com o susto leve das «manchas» que se uniam
essa energia sem espaço súbita «geometria» a costurar de fora
mordeduras velozes delicadezas
nervuras vivas
para seguir até ao fim «com os olhos»
como uma paisagem de espinhos faiscantes
«o contorno» que queima de uma lâmpada acesa
toda a noite no gabinete do cartógrafo.

Antropofagias, Texto 4


Edward Weston

“The camera should be used for a recording of life, for rendering the very substance and quintessence of the thing itself, whether it be polished steel or palpitating flesh”. E.Weston

Nascido a 24 de Março de 1886 em Highland Park, Illinois e falecido a 1 de Janeiro de 1958 em Wildcat Hill, Carmel, Califórnia, Edward Weston começou a fotografar com 16 anos de idade, após ter recebido como presente, uma câmara fotográfica do seu pai.
Em 1906, Weston vê a sua primeira fotografia publicada na revista Camera and Darkroom, tendo o seu trabalho como fotógrafo itinerante começado pouco depois, quando se muda para a Califórnia e onde começa a fotografar crianças, animais de estimação e alguns funerais.
Ciente da importância da formação técnica, Weston frequenta o Illinois College of Photography, regressando posteriormente à Califórnia, onde começa a desenvolver um trabalho de assinalável qualidade, destacando-se os trabalhos de pose e iluminação, aplicados à fotografia de retrato, num assumido estilo picturalista.
Em 1911, após casar e tornar-se pai do que seriam futuros fotógrafos (Brett e Cole Weston), Edward Weston abre o seu próprio estúdio, como retratista, em Tropico (actual Glendale), Califórnia, onde desenvolve o seu trabalho durante duas décadas.
Galardoado e reconhecido no seu tempo, destacando-se essencialmente como retratista e fotógrafo de dança moderna, Weston conhece a fotógrafa Margrethe Mather, que se tornará sua assistente e modelo fotográfico.
Em 1922, a carreira artística de Weston conhece um ponto de viragem, após uma visita efectuada à fábrica de aço ARMCO, em Middletown, Ohio, onde Weston contacta com novas realidades, depuradas e livres de artificialismos, que o fazem renunciar ao estilo picturalista, em favor das formas abstractas e da definição de pormenores. Weston contacta nessa altura, em Nova Iorque, com artistas como Alfred Stieglitz, Paul Strand, Charles Sheeler e Georgia O'Keefe.
Um dos períodos consagrados à fotografia de nús ocorre em 1923, no México, onde Weston conhece artistas como Diego Rivera, Frida Khalo, David Siqueiros e José Orozco.
Uma das fases mais importantes da carreira artística de Weston dá-se a partir de 1926, quando regressa novamente à Califórnia e começa a fotografar paisagens e formas naturais, nús e grandes planos de conchas marinhas e legumes (pimentos, couves), evidenciando as suas texturas e formas escultóricas. São também desse ano as fotogafias de rochas e árvores em Point Lobos, Califórnia.
Em 1932, conjuntamente com Ansel Adams, Willard Van Dyke, Imogen Cunningham e Sonya Noskowiak, Weston funda o que se intitulará Grupo f/64, nome escolhido devido à especificidade deste termo óptico, que assegura a máxima nitidez de imagem, quer em planos próximos ou distantes.
O ano de 1936 representa o que é para muitos o melhor período de Weston, por ser também o mais experimental, incidindo sobre nús, dunas e paisagens desérticas, em Oceano, Califórnia, e sobre o qual a presente apresentação /trabalho se insere.
Para além de ser o primeiro fotógrafo agraciado, no ano de 1937, com um fundo do Guggenheim Fellowship, que lhe permitiu viajar através da Califórnia e dos seus estados vizinhos durante dois anos, Weston contribuiu ainda com algumas das suas imagens para uma nova edição de Leaves of Grass, de Walt Whitman, no ano de 1941.
Refira-se, a título de curiosidade, que partir de 1915, Weston começou a reunir crónicas sobre a sua vida e obra, a que deu o nome de daybooks. Eis aqui um desses excertos:

“My way of working – I start with no preconcieved idea – discovery excites me to focus – then rediscovery through the lens – final form of presentation seen on ground glass, the finished print previsioned – complete in every detail of texture, movement, proportion before exposure – the shutter's release automatically and finally fixes my conception, allowing no after manipulation”.


Herberto Helder

Nascido a 23 de Novembro de 1930 no Funchal (Madeira), Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira parte em 1946 para Lisboa, onde frequenta os estudos liceais. Em 1948 matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, em 1949, muda para a Faculdade de Letras onde frequenta, durante três anos, o curso de Filologia Romântica, não tendo concluído o curso.
Oscilando a sua actividade profissional entre a banca e a publicidade, Herberto Helder publica o seu primeiro poema em Coimbra, no ano de 1954.
Em Lisboa, no ano de 1955, contacta com o grupo do Café Gelo, de que fazem parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo, publicando em 1958 o seu primeiro livro, O Amor em Visita, editado por Luiz Pacheco, o que pode em parte relacionar a sua escrita inicial com uma espécie de surrealismo tardio. Durante os anos que se seguem, vive em França, Holanda e Bélgica, países nos quais exerce profissões pobres e marginais.
Em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica os livros A Colher na Boca, Poemacto e Lugar. Em 1963 começa a trabalhar para a Emissora Nacional como redactor de noticiário internacional. Ainda nesse mesmo ano, publica Os Passos em Volta e produz A máquina de emaranhar paisagens. Data de 1968 a sua participação na publicação de um livro sobre o Marquês de Sade, o que o envolve num processo judicial no qual é condenado, o que provoca o seu despedimento da Rádio e da Televisão portuguesas.
Em 1970 viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, e escreve Os Brancos Arquipélagos. Em 1971 desloca-se para Angola, onde trabalha como redactor da revista Notícia. Enquanto repórter de guerra, é vítima de um grave desastre, ficando hospitalizado durante três meses. Data ainda desse ano a publicação de Vocação Animal e a produção de Antropofagias.
Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os Estados Unidos da América, em 1973, ano durante o qual publica Poesia Toda, obra que contém o conjunto da sua produção poética, fazendo uma tentativa frustrada de publicar Prosa Toda.
Em 1975, passa alguns meses em França e Inglaterra, regressando posteriormente a Lisboa, onde trabalha na rádio e em revistas. Em 1976, Herberto Helder participa na edição e organização da revista Nova que, sendo posterior à revolução de 25 de Abril de 1974, reconhecia na Literatura portuguesa, características que a aproximaram às Literaturas latino-americana, africana e espanhola, declinando uma direcção literária revolucionária.
Nos anos que se seguiram, publicou as obras Cobra, O Corpo, O Luxo, A Obra, Photomaton e Vox, A Cabeça entre as Mãos, As Magias, Última Ciência, Do Mundo e, mais recentemente, A Faca Não Corta o Fogo - Súmula & Inédita (2008). Ofício Cantante (2009) constitui a última versão, modificada, de Poesia Toda.
Sendo considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa, avesso a prémios, entrevistas e honrarias, Herberto Helder cultiva, desde há muito, uma existência quase eremita, aparentemente divorciada da sociedade.
Ao longo da sua obra, Herberto Helder visita temas como a mulher-mãe, o cosmos, a língua, a deambulação e identidade humanas, para além das geografias do corpo, do espaço e do tempo. É pai do jornalista Daniel Oliveira.


O lugar do corpo na escrita da paisagem – Reflexão

Edward Weston acreditava no diálogo contínuo entre todas as formas, cuja origem provinha da natureza, assente numa interacção constante entre micro e macrocosmos.
A imagem de Weston sugere um corpo humano, inscrito numa paisagem desértica.
O poema de Herberto Helder sugere um corpo, a partir de um mapa cartografado.
Nos dois casos, a contaminação está presente, seja pela sugestão de um corpo nú, vasto como uma montanha (em Weston), seja na transformação da matéria em corpo térmico-explosivo, objecto de prazer antropofágico (em Helder).
Em ambos os textos (visual e literário) aqui apresentados, o corpo surge como uma forma impressa, dotada de relevos e contornos próprios, caligafados numa geologia antropomórfica da paisagem.
Existe, do mesmo modo, uma interpretação sexual ambígua, aplicada ao universo das formas geométricas, lavradas na paisagem de Weston, ou mergulhadas em pulsão sanguínea, no texto de Helder.


Bibliografia:

Weston, Edward & Newhall, Nancy, Edward Weston's Book of Nudes, The J. Paul Getty Museum, Los Angeles, USA, 2007.
Mibelbeck, Reinhold, Fotografia do Século XX, Museu Ludwig de Colónia, Taschen, Colónia, Alemanha, 2001.
Trcka, Anton Josef, Weston, Edward, Newton, Helmut, The Artificial of the Real, Kestner Gesellschaft, Scalo, Hannover, Germany, 1998.
Ewing, William A., The Body, Photoworks of the Human Form, Thames and Hudson, London, UK, 1994.
Helder, Herberto, A Faca Não Corta o Fogo, Súmula & Inédita, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008
Helder, Herberto, Ou o Poema Contínuo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.
Cambridge Advanced Learner's Dictionary, Cambridge University Press, UK, 2005.
Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora, 2006.


Sitiografia:

http://www.edward-weston.com/
http://www.edward-weston.com/edward_weston_original_38.htm http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/biogra.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Herberto_H%C3%A9lder



Fernando Claudino
Aluno n.º 36447

3 comentários:

  1. Muito interessantes as suas escolhas e os seus tópicos de leitura, Fernando.
    Para si, e para os colegas que vão ainda apresentar trabalho ficam duas notas:
    1) informação biográfica excessiva (volto a repetir que se pretende apenas algumas notas sobre os artistas em causa);
    2) poema demasiado extenso (há que seleccionar um pequeno excerto para fazer uma leitura atenta).
    Diana Almeida

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  2. Professora Diana,

    Concordo com o referido relativamente à extensão das bibliografias dos autores; no meu caso, são fruto de entusiasmo e admiração por ambos.

    Quanto ao poema, toda a sua extensão representa um corpo, com trajecto e coerência próprios. Na minha opinião, só deste modo o poema de Herberto se pode comparar à dimensão plena da imagem de Weston.

    Fernando Claudino

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  3. Quanto à questão da biografia, julgo que a nossa aula de hoje serviu para ilustrar a validade do enquadramento metodológico por mim proposto e explicitado no programa da cadeira.

    Quanto à necessidade de se delimitar um excerto do texto, compreendo a sua argumentação, Fernando. Contudo, nesse caso também poderíamos aduzir que apenas teria sentido ler este poema no contexto das restantes "Antropofagias", ou incluído n' "O Poema contínuo"... E imagine o que significaria aplicar o mesmo tipo de lógica a um romance, quando os colegas optam por escolher esse género literário para o seu trabalho.
    Na verdade, o facto de o poema ser demasiado extenso acabou por nos impedir de o analisar de modo cabal, pelo que não lhe fizemos justiça.

    O objectivo aqui será circunscrever um excerto literário de modo a que a sua leitura aprofundada possa ser colocada em diálogo com a leitura da obra de arte escolhida. Trata-se de uma opção metodológica com um objectivo preciso em mente.

    Diana Almeida

    + peroro longamente na esperança de que os colegas que ainda não fizeram a apresentação possam aproveitar estas reflexões

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