quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Comentário à campanha publicitária Dove


Para analisar uma imagem, devemos em primeiro determinar qual a sua função. Neste caso falamos de um vídeo publicitário, logo a sua função será  comercial: vender um produto supérfluo  a um público específico (bens necessários não carecem de estratégias de mercado). No entanto, essa função comercial é posta em causa devido à ausência misteriosa do produto a ser vendido. Nenhum dos participantes usa ou menciona qualquer produto da marca. Na verdade, só o título aponta explicitamente para o seu caráter comercial. Somos levados a assumir que este vídeo se está a movimentar para além dessa função, abrindo-se à possibilidade de ser outra coisa que não só uma armadilha de vendas.
Explicam-nos como vamos assistir a uma espécie de experiência social, em que um artista forense servirá de instrumento para nos ajudar a perceber o que uma série de mulheres pensam sobre si mesmas e como são vistas pelos outros. Desta forma, o vídeo aparenta desempenhar uma função social, apresentando-se como um contributo da marca para a sociedade. 
Vamos, então, analisar de que forma estas duas funções — comercial e social — se concretizam. Qualquer publicidade pressupõe a criação de um situação-problema e de uma proposta de solução através da compra de um produto. O problema ativa medo, gera ansiedade, e por sua vez leva à ativação de um desejo que só deverá ser satisfeito pela compra. Assim, podemos dizer que a publicidade é a exploração comercial do medo.
O problema apresentado neste vídeo é criado a partir das seguintes premissas: 
1. todas as mulheres têm potencial de beleza;
2. é-nos mostrado que esse potencial não é exercido e por isso as mulheres levam vidas menos felizes.
A solução é muito mais simples do que o problema: compre os nossos produtos para alcançar o seu potencial máximo de beleza. Está assim exposta a função comercial do vídeo.
Embora tenhamos visto que a função social é apenas uma máscara para vender um produto, não nos podemos ainda dar por satisfeitos. Este vídeo empreende ainda mais dois esforços bizarros. Em primeiro lugar, realiza um perigoso esforço de assimulação entre publicidade e ciência. Em segundo lugar, um esforço de perpetuação de preconceitos e esterótipos sobre as mulheres, o poder e e a beleza.
 O vídeo invoca uma aura científica, de experiência social como as realizadas por psicólogos ou  sociólogos. É uma cómica invasão do mundo comercial pelo universo do conhecimento cientifico,  numa tentativa de apagar as barreiras que os separam.
A promessa é de que vamos descobrir como pensam as mulheres e como são percecionadas pelos outros. No entanto, o método que utilizam é altamente duvidoso: 1. Não há qualquer definição do universo a estudar. Falam somente em "mulheres", sem qualquer preocupação com a definição do termo. Que mulheres? Todas, americanas, ocidentais? Para representar esse universo, é usada uma amostra de apenas 20 mulheres, das quais apenas três (brancas)  aparecem tempo suficiente para podermos fixar os seus traços físicos. 2. O uso de um artista forense, que incorpora a figura do técnico-especialista é duvidosa, uma vez que este tem conhecimento prévio do objetivo da experiência, logo os seus retratos serão enviesados. O retratista  viola ainda um dos passos fundamentais deste processo, uma vez que é necessária a aprovação dos retratos por parte das participantes e a introdução de quaisquer alterações que estas possam sugerir, visto a nossa imagem mental não ser 100% precisa. 3. No website da marca, podemos revisitar os retratos e compará-los entre eles, mas sem qualquer fotografia das retratadas.
Muitos mais argumentos destroem o caráter pseudo-científico deste vídeo. A verdadeira intenção da marca é a de imbuir os seus produtos de uma qualidade científica, indispensável para qualquer produto oferecido a uma sociedade tecnocrata em pleno século XXI.
A exploração de estereótipos e preconceitos é recorrente no mundo da publicidade. As mulheres selecionadas para participar neste vídeo estabelecem um padrão de normalidade premeditado.  Não vemos mulheres com caras ou corpos excessivamente feios ou obesos. Vemos mulheres saudáveis, com um aspeto cuidado mas natural. São um grupo culturalmente específico. São mulheres que se definem como “normais”. Vemos aqui a perpetuação de um estereótipo que representa o público-alvo desta publicidade.
Estas mulheres mostram-se obcecadas com certas imperfeições, como rugas ou caras demasiado redondas. Passam assim uma imagem de que é natural para uma mulher ser obcecada com o seu aspeto físico, excluindo as mulheres que se consideram de facto belas e livres de imperfeições  e mulheres feias ou de aspeto mediano que não se preocupam com essas imperfeições.
No website da campanha, a marca lamenta que apenas 4% das mulheres se considerem belas. Isto dá a ideia de que a beleza é uma caraterística fundamental para se ser uma mulher feliz e exclui mulheres que embora se considerem feias, são felizes. Estabelece-se uma ligação proporcional entre o poder de agenciamento da mulher, na sua busca pela felicidade, e o seu grau de beleza. Muitas mulheres não possuem beleza física. Não possuir essa beleza não as condena, de todo, à infelicidade. Só temos acesso a mulheres dependentes do seu aspeto físico para se sentirem felizes e concretizadas. Está também ausente o conceito de beleza emocional ou intelectual. De facto, nunca é dada às participantes a oportunidade de se caraterizarem psicológica e intelectualmente.
Assim, chego à conclusão de que qualquer publicidade é corrupta na intenção de se afastar da sua função comercial. É e sempre será uma fábrica de desejos,  tecelã de uma realidade constantemente deferida, cuja força de produção é o medo e cujo contributo social é nulo. Este vídeo foi lançado em 2013 e rapidamente se tornou viral (29.4 milhões de visualizações em apenas 10 dias). Nesse ano, foi o vídeo publicitário mais visto, fazendo da campanha um estrondoso sucesso.

Quero agradecer à Paula por ter partilhado connosco este vídeo, sem o qual não teria tido a possibilidade de discutir estes assuntos, que são muito relevantes para ajudar a compreender a cultura visual que nos rodeia a cada segundo e que molda a nossa perceção do mundo.
                                                                                                
                                                                                                       David Mira

                  
Fontes
Dove Social Mission:
http://www.dove.us/Social-Mission/Self-Esteem-Statistics.aspx

HuffingtonPost Business:
http://www.huffingtonpost.com/2013/04/27/doves-fake-new-real-beaut_n_3165479.html

1 comentário:

  1. Brilhante reflexão, David. Estou orgulhosa da sua perspicácia e da pertinência dos seus argumentos, certamente inspirados pela nossa cadeira de Cultura Visual. É, de facto, importante termos em conta o modo como a indústria publicitária molda as políticas de identidade e procura escamotear a sua função comercial através de estratégias várias. Este impacto é especialmente sentido entre as mulheres, como sabemos, o que gera problemas diversos, como disfunções alimentares endémicas no mundo ocidental.

    ResponderEliminar