Berenice Abbott, "EL," SECOND AND THIRD AVENUE LINES Bowery and Division Streets, processo de prata coloidal, 24 Abril 1936,
(24.4 x 19.9 cm), Museum of the City of New York, Nova Iorque
«Uma vez ouvi uma história engraçada sobre sonambulismo. Não me recordo se a li numa revista, ou talvez num romance. Contava que os sonâmbulos são pessoas que têm duas vidas, uma acordada e outra a dormir. Quando dormem, vivem a outra vida que deveriam ter tido, aquela que está para lá das fronteiras da realidade. Que está guardada dentro da memória escondida que só vem ao de cima quando estão inconscientes.»
Kim deteve-se e olhou-me.
(…)
Kim morreu às 5.43 daquela madrugada, segundo o relatório do médico legista. Foi encontrada por um automobilista na berma da ponte de Williamsburg, em roupão, desfeita por dentro pelo choque frontal com um carro a grande velocidade, que fugiu da cena do atropelamento. Na altura do acidente, acabara de cair sobre Nova Iorque o pior temporal dos últimos anos, e a estrada encontrava-se alagada. Apesar de a chuva ter parado, a intensidade do temporal tinha deitado abaixo algumas luzes da ponte, e a pessoa que a matou não a viu ou, na melhor das hipóteses, julgou tratar-se de um animal que atravessava a estrada. Afinal, quem poderia estar àquela hora, naquele lugar, após uma intempérie, caminhando sem sentido ao longo da ponte, de olhos abertos mas vivendo um sonho?
(…)
Na altura em que Kim deixava o quarto na East Broadway, subindo a Clinton Avenue para entrar na ponte pela faixa dos automóveis – a ponte de Williamsburg tem uma faixa para pedestres, protegida da estrada –, eu já dormia o sono inquieto do álcool na minha cama da residência, sonhando com rostos estranhos e desfigurados, despertando e vez em quando para tornar logo a adormecer.
TORDO, João, Hotel Memória. Lisboa: QUIDNOVI, 2007 (p. 27, 40)
•Uma visão desfocada (fotografia), lembranças confusas (texto)
•Uma visão desfocada (fotografia), lembranças confusas (texto)
• blur (mancha,indistinção) / blurry (turvo, indistinto)
Gosto de pensar que estes dois textos estão interligados na dimensão do espaço. Tanto na fotografia de Berenice Abbott (1898-1991), como no excerto literário de João Tordo (1975 -) deparamo-nos com demandas no território. Abbott, no advento de alterações irreversíveis na paisagem urbana de Nova Iorque tenta dar a conhecer através da sua fotografia documental (directa, não manipulada tanto no conteúdo como no processo de revelação) um “passado visível” (“visible past)”. Escolhi um exemplo da série de fotografias do Lower East Side, bairro da cidade que ocupa mais de metade do livro Changing New York (1939) produzido por Abbott, ao abrigo de subsídios da Federal Art Project da Works Progress Admnistration e do Museum of the City of New York. Abbott é obsessiva na documentação geográfica exacta das ruas (como se pode observar no título da fotografia). Tordo, por sua vez, narra uma intriga complexa, sombria e incerta nas mesmas ruas do Lower East Side. Ele é de igual forma rigoroso na descrição de zonas, ruas e intersecções. O escritor estudou no City College de Nova Iorque, local onde parte da acção do livro se desenrola. Cerca de setenta anos depois, Tordo e as suas personagens percorrem os mesmos trilhos de Abbott e contudo percepcionam uma diferente experiência da cidade.
A fotografia é tirada de dia. Encontramo-nos no domínio do espaço público. A luz do sol é um factor decisivo na iluminação da composição fotográfica. O jogo de luzes e sombras dá a ver um picotado resultante da estrutura metálica recortada do comboio elevado (“EL”). O ponto de fuga da representação é representado pelos carris que fluem paralelos ao plano da fotografia, sendo que a curva confere profundidade, movimento e dinâmica à representação. Este bairro parece prolongar a sua existência debaixo dos carris, com os seus mastros de ferro a pontuar verticalmente o espaço pictórico. Vertical está também a figura humana, ordenada no espaço citadino, não correndo perigo. Os corpos estão alerta e seguem um código de sobrevivência, do conhecimento geral. A cidade não representa, aqui, perigo.
No texto literário a cidade, o seu funcionamento revela-se fatal. Kim sai de casa sonâmbula, de noite. Movimenta-se pela cidade, vai por cima da ponte onde é facilmente recolhida por um automóvel. É aparentemente invisível, o seu estranho corpo errante naquele viaduto. Um temporal abatia-se sobre a cidade, a figura humana de Kim era confundida com a escuridão, o seu corpo deambulava desnorteado, descontrolado, quebrava as regras de conduta dos peões, de ordem no trânsito. A cidade não teve resposta para dar aquele corpo aparentemente acordado, mas na verdade inconsciente. O resultado foi violento e trágico.
De volta à fotografia observa-se a arquitectura dos transportes públicos, um ícone da cidade da altura, a qual provoca alterações no aspecto da cidade, assim como na vivência dos habitantes. Liga locais distantes, promove encontros e desencontros, aproxima as diferentes e distantes partes da cidade. Desloca habitantes dos seus locais de origem, populariza as características de cada bairro – um corpo tecnológico aproxima outros corpos humanos. Na periferia dos carris observam-se várias fachadas de edifícios bem iluminados pela luz do dia. Vêem-se anúncios publicitários, montras, lojas. Há um secreto burburinho na aparente calma da representação fotográfica. As silhuetas de homens indistintas são corpos quase desmaterializados. Convivem debaixo do “EL” aproveitando a sombra deste. Estão na penumbra da estrutura, sem a ameaça de colapso.
Esta fotografia, apesar de ser bastante marcada pela arquitectura dos caminhos-de-ferro e dos edifícios, transmite uma sensação desfocada, turva, indistinta. Nas imagens fotográficas de Abbott a preocupação com a construção era tal que a levava a “encenar” os locais antes de fazer a sua máquina disparar. Assim, nas fotografias há espaço para o vazio, a arquitectura, as pontes, a figura humana. É essa mesma sensação de vaga confusão, aliada em simultâneo ao planeamento que, Tordo testemunha no excerto literário. Os dois artistas esforçam-se por descobrir, destapar as essências e explicações mais profundas, essas que a vivência quotidiana não parece disposta a oferecer. Nas palavras de Abbott: "I agree that all good photographs are documents, but I also know that all documents are certainly not good photographs. Furthermore, a good photographer does not merely document, he probes the subject, he ‘uncovers’ it …” Tal como Abbott, o narrador em Tordo quer documentar as circunstâncias da morte de Kim.
Gosto de pensar que estes dois textos estão interligados na dimensão do espaço. Tanto na fotografia de Berenice Abbott (1898-1991), como no excerto literário de João Tordo (1975 -) deparamo-nos com demandas no território. Abbott, no advento de alterações irreversíveis na paisagem urbana de Nova Iorque tenta dar a conhecer através da sua fotografia documental (directa, não manipulada tanto no conteúdo como no processo de revelação) um “passado visível” (“visible past)”. Escolhi um exemplo da série de fotografias do Lower East Side, bairro da cidade que ocupa mais de metade do livro Changing New York (1939) produzido por Abbott, ao abrigo de subsídios da Federal Art Project da Works Progress Admnistration e do Museum of the City of New York. Abbott é obsessiva na documentação geográfica exacta das ruas (como se pode observar no título da fotografia). Tordo, por sua vez, narra uma intriga complexa, sombria e incerta nas mesmas ruas do Lower East Side. Ele é de igual forma rigoroso na descrição de zonas, ruas e intersecções. O escritor estudou no City College de Nova Iorque, local onde parte da acção do livro se desenrola. Cerca de setenta anos depois, Tordo e as suas personagens percorrem os mesmos trilhos de Abbott e contudo percepcionam uma diferente experiência da cidade.
A fotografia é tirada de dia. Encontramo-nos no domínio do espaço público. A luz do sol é um factor decisivo na iluminação da composição fotográfica. O jogo de luzes e sombras dá a ver um picotado resultante da estrutura metálica recortada do comboio elevado (“EL”). O ponto de fuga da representação é representado pelos carris que fluem paralelos ao plano da fotografia, sendo que a curva confere profundidade, movimento e dinâmica à representação. Este bairro parece prolongar a sua existência debaixo dos carris, com os seus mastros de ferro a pontuar verticalmente o espaço pictórico. Vertical está também a figura humana, ordenada no espaço citadino, não correndo perigo. Os corpos estão alerta e seguem um código de sobrevivência, do conhecimento geral. A cidade não representa, aqui, perigo.
No texto literário a cidade, o seu funcionamento revela-se fatal. Kim sai de casa sonâmbula, de noite. Movimenta-se pela cidade, vai por cima da ponte onde é facilmente recolhida por um automóvel. É aparentemente invisível, o seu estranho corpo errante naquele viaduto. Um temporal abatia-se sobre a cidade, a figura humana de Kim era confundida com a escuridão, o seu corpo deambulava desnorteado, descontrolado, quebrava as regras de conduta dos peões, de ordem no trânsito. A cidade não teve resposta para dar aquele corpo aparentemente acordado, mas na verdade inconsciente. O resultado foi violento e trágico.
De volta à fotografia observa-se a arquitectura dos transportes públicos, um ícone da cidade da altura, a qual provoca alterações no aspecto da cidade, assim como na vivência dos habitantes. Liga locais distantes, promove encontros e desencontros, aproxima as diferentes e distantes partes da cidade. Desloca habitantes dos seus locais de origem, populariza as características de cada bairro – um corpo tecnológico aproxima outros corpos humanos. Na periferia dos carris observam-se várias fachadas de edifícios bem iluminados pela luz do dia. Vêem-se anúncios publicitários, montras, lojas. Há um secreto burburinho na aparente calma da representação fotográfica. As silhuetas de homens indistintas são corpos quase desmaterializados. Convivem debaixo do “EL” aproveitando a sombra deste. Estão na penumbra da estrutura, sem a ameaça de colapso.
Esta fotografia, apesar de ser bastante marcada pela arquitectura dos caminhos-de-ferro e dos edifícios, transmite uma sensação desfocada, turva, indistinta. Nas imagens fotográficas de Abbott a preocupação com a construção era tal que a levava a “encenar” os locais antes de fazer a sua máquina disparar. Assim, nas fotografias há espaço para o vazio, a arquitectura, as pontes, a figura humana. É essa mesma sensação de vaga confusão, aliada em simultâneo ao planeamento que, Tordo testemunha no excerto literário. Os dois artistas esforçam-se por descobrir, destapar as essências e explicações mais profundas, essas que a vivência quotidiana não parece disposta a oferecer. Nas palavras de Abbott: "I agree that all good photographs are documents, but I also know that all documents are certainly not good photographs. Furthermore, a good photographer does not merely document, he probes the subject, he ‘uncovers’ it …” Tal como Abbott, o narrador em Tordo quer documentar as circunstâncias da morte de Kim.
Bibliografia
BARTHES, Roland, A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1980
KLEE, Paul, Escritos sobre Arte, Lisboa: Cotovia, 1990
SONTAG, Susan, On Photography, London: Penguin Books, 1971
TORDO, João, Hotel Memória. Lisboa: QUIDNOVI, 2007
1990, Berenice Abbott Photographs. (intro, Muriel Rukeyser, David Vestal) Washington: Smithsonian Institution
1994, The new vision: photography between the world war. New York: The Metropolitan Museum of Art
1995, Berenice Abbot. (intro. Hank O’neal) Paris: Centre National de la Photographie
Sitiografia
KLEE, Paul, Escritos sobre Arte, Lisboa: Cotovia, 1990
SONTAG, Susan, On Photography, London: Penguin Books, 1971
TORDO, João, Hotel Memória. Lisboa: QUIDNOVI, 2007
1990, Berenice Abbott Photographs. (intro, Muriel Rukeyser, David Vestal) Washington: Smithsonian Institution
1994, The new vision: photography between the world war. New York: The Metropolitan Museum of Art
1995, Berenice Abbot. (intro. Hank O’neal) Paris: Centre National de la Photographie
Sitiografia
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/589/Berenice-Abbott
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/40537/Eugene-Atget
http://en.wikipedia.org/wiki/Berenice_Abbott
http://www.artsmia.org/get-the-picture/abbott/index.html
http://www.mcny.org/museum-collections/berenice-abbott/abbott.htm
http://www.artnet.com/artists/artisthomepage.aspx?artist_id=1178&page_tab=Artworks
http://artephotographica.blogspot.com/2009/03/r-quivo-universal.html http://www.nycmoldremovalservices.com/mold_articles/site_images/new-york-city-manhattan-map-remediation-area.gif
http://www.transitmuseumeducation.org/trc/background
http://www.wook.pt/authors/detail/id/30862
http://joaotordo.blogspot.com/
Apresentação dia 22 de Março
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/40537/Eugene-Atget
http://en.wikipedia.org/wiki/Berenice_Abbott
http://www.artsmia.org/get-the-picture/abbott/index.html
http://www.mcny.org/museum-collections/berenice-abbott/abbott.htm
http://www.artnet.com/artists/artisthomepage.aspx?artist_id=1178&page_tab=Artworks
http://artephotographica.blogspot.com/2009/03/r-quivo-universal.html http://www.nycmoldremovalservices.com/mold_articles/site_images/new-york-city-manhattan-map-remediation-area.gif
http://www.transitmuseumeducation.org/trc/background
http://www.wook.pt/authors/detail/id/30862
http://joaotordo.blogspot.com/
Maria Manuel T. Carneiro
Para uma leitura mais agradável e inspiradora deixo algumas referências (que me lembram, num sentido lato, o tema da fotografia e a passagem do livro)!
ResponderEliminarFilme:
* "Million Dollar Hotel" de Wim Wenders, 2000
Música:
* Banda Sonora do mesmo filme (U2)
* "Psyche", Massive Attack, 2009
Obrigada
Maria
Muito sugestivo, Maria!
ResponderEliminarPode corrigir os espaçamentos, por favor.
Esperamos comentários dos colegas...
Diana Almeida
Olá
ResponderEliminarA sensação que tenho desta imagem é que é a luz que parece estar em movimento, em contraste com os homens, que, apesar de estarem em movimento, como se vê pela perna de um, na verdade estão parados na fotografia.
Gosto quando dizes "Tal como Abbott, o narrador em Tordo quer documentar as circunstâncias da morte de Kim", porque é também essa a ideia que tenho. Que o "congelar" do movimento da figura da esquerda, pode associar-se ao congelar do momento em que Kim morre.
assim como a ideia de "invisibilidade" de Kim, que pode estar ligada à terceira figura, que está do lado direito da imagem, mais misturado nas sombras que as duas outras figuras e que parece, também ela invisível. :)
Gosto das tuas ideias.
Obrigada Catarina pelo comentário!
ResponderEliminarAbbott dizia, em tom de queixa, que não podia fotografar mais pessoas neste projecto do "Changing New York", porque não dispunha do material fotográfico apropriado. Em todo o caso penso que a representações do humano como esta são interessantes e intrigantes. As duas figuras da frente (nublosas) e a da direita (mais nítida) são resultado também do processo de "prata coloidal" no qual o fotógrafo durante a revelação tem a possibilidade de controlar o contraste da imagem final. A vida do narrador “congelou” de tal maneira com a morte de Kim, que no tempo da narração ele questiona tudo o que vivera com Kim até ao dia da sua morte.
Maria
Vejo que se esboça já um diálogo cheio de interesse. Convém indicarem o vosso primeiro e último nome ao fazerem os comentários, para eu poder registar.
ResponderEliminarDiana Almeida
Repito o comentário deixado atrás, desta vez devidamente identificado:
ResponderEliminarOlá
A sensação que tenho desta imagem é que é a luz que parece estar em movimento, em contraste com os homens, que, apesar de estarem em movimento, como se vê pela perna de um, na verdade estão parados na fotografia.
Gosto quando dizes "Tal como Abbott, o narrador em Tordo quer documentar as circunstâncias da morte de Kim", porque é também essa a ideia que tenho. Que o "congelar" do movimento da figura da esquerda, pode associar-se ao congelar do momento em que Kim morre.
assim como a ideia de "invisibilidade" de Kim, que pode estar ligada à terceira figura, que está do lado direito da imagem, mais misturado nas sombras que as duas outras figuras e que parece, também ela invisível. :)
Gosto das tuas ideias.
Catarina Marques, nº 27173
Para dar mais "background" ao meu comnetário anterior gostava de partilhar desabafos do narrador da história, para assim percebemos a gravidadde da incerteza da sua narrativa:
ResponderEliminar"O momento em que a histõria que tenho para contar te o seu verdadeiro início- isto é a primeira vez que troquei uma palavra com a Kim - é precisamente o mesmo em que a minha memória começa a falhar."
[Na noite do acidente.]
"Não guardo memória da conversa que tivemos. (...)Ou talvez fosse tudo imaginação. (...) Escrevo aquilo que acredito ter acontecido."
Cada vez mais esta fotografia me parece arrastada no tempo. Não se trata só de um espaço/local/morada/coordenada geográfica, mas também de tempo (que passa/movimento).
Obrigada,
Maria Carneiro
Olá Maria,
ResponderEliminarpenso que a tua relação entre a foto e o texto está extremamente interessante. A fotografia também me fez reflectir sobre o tempo, principalmente num sentido de espera e passagem, que no texto joga com a questão so sonanbulismo e da morte. Estas são duas formas muito distinstas e marcadas de tempo.
Achei curioso referires: "A fotografia é tirada de dia. Encontramo-nos no domínio do espaço público. A luz do sol é um factor decisivo na iluminação da composição fotográfica", creio que é este mesmo factor de composição que torna as pessoas da fotografia numa espécie de vultos e também isso tem uma forte relação com o texto que escolheste.
Foi uma bonita escolha de texto e fotografia. As ideias estão muito interressantes.
Ana Raquel Nunes n 37093
No email da discipline estão todas as citações que foram distribuídas nos envelopes - parte da minha apresentação!
ResponderEliminarMaria